terça-feira, julho 7

Raposa-do-campo: o único canídeo 100% brasileiro

Ela enfrenta sozinha predadores naturais e o impacto da agropecuária em seu hábitat no interior do Brasil. Agora, as primeiras pesquisas científicas podem esboçar um futuro melhor para a espécie

Já passa da meia-noite e Kerry e Stacie ainda não voltaram para a toca. Enquanto o casal não retorna para casa, seus dois filhotes saem para explorar o ambiente de moitas secas e pedras, alheios à leve brisa que promete trazer uma madrugada longa e fria. Longe da vista dos pais, os pequenos correm, saltam, entram e saem freneticamente de seu lar fincado no meio de um pasto. Os dois filhotes deraposa-do-campo (Lycalopex vetulus) têm cerca de 3 meses de vida, e a toca é provavelmente a terceira que frequentam nessa região de fazendas, rebanhos de gado e muitos cupinzeiros no município de Cumari, sudeste de Goiás.
Na região dominada há muito tempo pela pecuária, o único canídeo 100% brasileiro aprendeu a sobreviver entre tantos outros carnívoros do interior do Brasil – lobos-guará, cachorros-do-mato,suçuaranas. No entanto, sua existência se torna frágil diante das atividades humanas. No mesmo instante em que as raposinhas brincam, Kerry ou Stacie certamente têm de desafiar alguma estrada cheia de caminhões, por exemplo, em busca de alimento para as suas crias.
É nesse cenário hostil para a fauna silvestre que o biólogo Frederico Gemesio Lemos encontrou os elementos necessários para pesquisar a raposinha, um dos sete canídeos menos conhecidos no mundo – no total, são 35 espécies existentes. Em 2002, ainda estudante de graduação, Lemos deparou com um espécime atropelado e resolveu levá-lo à Universidade Federal de Uberlândia. A falta de conhecimento de seus colegas mostrou uma lacuna que deveria ser preenchida. Desde então, ele vem percorrendo as estradas de terra que recortam as fazendas da região conhecida por Limoeiro, no município goiano de Cumari, na tentativa de localizar e entender um pouco mais sobre a ecologia da espécie. Sua equipe adotou o padrão, não usual, de dar nome aos animais, em vez de simples números numa planilha de dados. Cada nome conecta a equipe não apenas a informações científicas mas também a uma memória pessoal.
“Os adultos não dormem com os filhotes na toca”, sussurra Lemos ao meu lado. Estamos a 200 metros de distância do local em que os filhotes continuam com suas brincadeiras. Lá se vão quatro horas desde a última aparição da fêmea Stacie. Enfim, ela surge, desconfiada, por detrás da única árvore da área. Chega sorrateira à toca e emite um som baixo chamando os filhotes, que aparecem alvoroçados e famintos. A mãe cheira um deles, que mama rapidamente. Depois, sai a passos largos rumo ao topo da colina. O filhote menor ainda corre para acompanhá-la, mas logo volta e se junta ao irmão.
EM UM TRECHO DE 15 MIL HECTARES no sudeste de Goiás e do Triângulo Mineiro, desde 2008 Lemos e a bióloga Fernanda Cavalcanti de Azevedo monitoram várias raposinhas, dentro do Programa de Conservação dos Mamíferos do Cerrado (PCMC). “Apesar de ser uma área de agropecuária extensiva, é impressionante a quantidade de carnívoros silvestres e outros mamíferos que temos encontrado”, diz Lemos.
Em 2013, Lemos e Fernanda organizaram uma força-tarefa com vários biólogos e veterinários – daí os nomes da maioria das raposas, escolhidos em homenagem a esses parceiros. Com o apoio de diversas instituições nacionais e estrangeiras, eles fizeram, durante dois meses, capturas para aparelhamento dos animais com radiocolar, realização de biometria e coleta de amostras de sangue. “Queremos acompanhar a gestação das raposas fêmeas monitoradas. Só assim saberemos mais sobre o seu dia a dia e a relação entre o casal – como os canídeos interagem entre si ou com espécies diferentes e quais são seus hábitos alimentares e de defesa.”
A dupla já constatou que pelo menos 40% da população é morta por tiros, envenenamento, perseguição por cães domésticos, fechamento proposital de tocas, atropelamento na ferrovia ou nas estradas que cortam a região. Outras prováveis mortes decorrem de doenças transmitidas por animais domésticos. Alguns moradores reagem mal ao ataque das raposas às criações de galinha. “Os fazendeiros dizem que não se importam com os ‘bichos do mato’. Desde que não entrem em seus quintais”, desabafa Lemos.

Se um animal silvestre não conhece porteiras e divisas, como minimizar tais conflitos? Somos despertados dessas reflexões com o surgimento de um casal de cachorros-do-mato (Cerdocyon thous). Assustados com eles, os filhotes se entocam novamente. A espécie é muito comum no Brasil, e, na região do Limoeiro, seu território se sobrepõe ao das raposinhas. Por isso, talvez Kerry e Stacie mudem de toca com certa frequência. Lemos acredita que, para sobreviver, a raposa se adaptou a um nicho ecológico não muito utilizado por canídeos maiores, usufruindo de tocas de tatu abandonadas e se alimentando de pequenos frutos silvestres e insetos, sobretudo o cupim.
Quando Stacie retorna de sua ronda noturna, os filhotes saem alvoroçados, mas a fêmea se mostra incomodada pelo cheiro dos cachorros-do-mato. Sem pestanejar, pega um dos filhotes pela boca e some noite adentro, seguidos pelo outro. Isso significa que a família abandonou a toca. O instinto de sobrevivência da prole dificulta nossa missão: teremos que recomeçar a busca pela nova morada das raposas.
Nos dias seguintes, dobramos esforços para percorrer a área de fazendas conhecida como Masai Mara – assim batizada em homenagem à grande planície africana dominada por animais selvagens. Seguimos no percalço do casal e seus dois filhotes. No lusco-fusco, notamos a silhueta de tamanduás-bandeira,os passos ligeiros dos cachorros-do-mato e a presença silenciosa de Stacie rondando um aglomerado de pedras. “Ali deve estar a toca”, exalta-se Lemos.
Os cientistas já constataram que a raposa não é um animal solitário, como se imaginava – o casal compartilha a mesma área por um tempo bem maior, mesmo fora do período reprodutivo. “O cuidado do macho com os filhotes começa desde a gestação. O casal se reveza na preparação da toca e nos cuidados com a prole, que pode levar de dez meses a um ano”, conta Lemos.
A nova toca de Stacie não é muito longe da primeira. Entre blocos de quartzito branco, um pequeno buraco dá acesso a uma câmara mais larga. No fim da tarde, os filhotes dão as caras. Os dois estão entrando na fase de se afastarem cada vez mais da toca. Apesar de naturalmente seguirem os pais, algum filhote mais ousado pode decidir desbravar o ambiente por conta própria. É aí que mora o perigo, pois ainda são muito vulneráveis principalmente aos cachorros das fazendas. Por isso, a equipe decidiu trabalhar em áreas afetadas pelo homem. Os cientistas querem descobrir como os animais respondem às frequentes modificações ambientais. “Temos focado nossa pesquisa em áreas fora de unidades de conservação, pois essa é a realidade dos animais. Em Minas Gerais, por exemplo, temos menos de 5% do território protegido.”
 Lemos acredita que é necessário também criar campanhas efetivas de educação e conscientização da população. “À exceção das áreas protegidas, a tendência mundial é de que os animais silvestres tenham cada vez mais contato com o homem. Quero ver os netos de Stacie e Kerry caminhando serelepes por estas colinas, buscando tocas e farejando seu cupim.”
Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL  


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